Reconhecimento verdadeiro dos direitos dos negros ou estratégia de marketing político?
por Bruna Silveira[1]
Em um país onde, há 130 anos, ainda éramos circundados pelo sistema escravagista, é, no mínimo, justificável que sejam discutidas propostas de ações afirmativas, como forma de inclusão total e justa dos negros à sociedade brasileira. Muito se diz sobre o combate aos privilégios das ditas classes dominantes, mas o que é genuinamente feito em prol da luta pelos direitos da população negra? Com mais de 50% de representatividade populacional do país (112,7 milhões de brasileiros se autodeclaram pretos e pardos, segundo o IBGE [2]), os negros são a maioria. Mas as políticas públicas nem sempre são pensadas neste contexto de dívida moral e histórica.
A mídia e a população, ao darem destaque a este ou aquele candidato à Presidência da República e ao caracterizá-los como intolerantes e extremistas, fecham os olhos para as condições que atravessam nossa estrutura socioeconômica e que garantem a promoção dos discursos intolerantes em relação aos públicos vulneráveis, sobretudo em relação aos negros. Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito, Silvio Almeida, autor do livro “O que é racismo estrutural?”, afirma[3] que o racismo não é uma prática isolada relativa apenas ao caráter institucional, o racismo é “(...) um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é estruturalmente reproduzida”.
No atual contexto brasileiro, nota-se nas agendas midiáticas e políticas a discussão em torno da garantia dos direitos humanos, que enquadra os termos tolerância e civilidade. Segundo o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas, a tolerância, considerada central para as políticas liberais, só se torna fundamental quando se despreza as ideias do outro. “(...) só podemos falar de tolerância se as partes envolvidas basearem sua rejeição em um conflito cognitivo entre crenças e atitudes que persistem por boas razões.” (HABERMAS, 2003, p. 3, tradução da autora).
A fim de analisarmos a preocupação dos candidatos quanto às políticas de igualdade racial, a seguir, será apresentada uma comparação dos Programas de Governo dos candidatos em relação ao debate da RedeTV![4] (promovido em 17 de agosto) e as entrevistas realizadas no Jornal Nacional, da Rede Globo (de 27 a 31 de agosto). O início do período eleitoral oficial, 15 de agosto de 2018, é o ponto de partida para a análise.
O Gráfico 1 demonstra a quantidade de vezes em que as palavras-chave pesquisadas (Negro/negra; igualdade racial/desigualdade racial; raça/racial/raciais; cota; ação afirmativa / ações afirmativas/ política afirmativa / políticas afirmativas; afrodescendente) aparecem nos programas de governo de todos os presidenciáveis.
GRÁFICO 1
Dos 13 candidatos, 61,53% fazem referência às pautas dos direitos dos negros. Guilherme Boulos (PSOL), que tem um Plano de Governo com 288 páginas, cita as palavras-chave 233 vezes. Já Alvaro Dias (Podemos), Cabo Daciolo (Patriota), Eymael (DC), Jair Bolsonaro (PSL) e João Amoêdo (Novo) não fazem alusão a essas agendas.
Tomando como base a pesquisa Ibope divulgada no dia 20 de agosto[5], o trabalho de análise será feito apenas com os quatro primeiros candidatos[6] com maior índice de intenção de voto, são eles: Jair Bolsonaro (PSL), Marina Silva (Rede), Ciro Gomes (PDT) e Geraldo Alckmin (PSDB).
Dos quatro candidatos analisados, três fazem referência às questões em seus planos de governo, enquanto, no debate da RedeTV! e nas entrevistas do Jornal Nacional, da Rede Globo, apenas dois candidatos mencionam as palavras-chave pesquisadas.
GRÁFICO 2
Jair Bolsonaro (PSL)
No Plano de Governo do candidato (81 páginas) não são citadas as palavras-chave, portanto, não são discutidas as pautas das políticas afirmativas. Em entrevista ao Jornal Nacional, quando questionado sobre o Brasil que ele quer para o futuro, o ex-capitão do Exército faz menção à união entre os brasileiros:
“Nos últimos 20 anos, dois partidos mergulharam o Brasil na mais profunda crise, ética, moral e econômica. Vamos juntos mudar esse ciclo, mas para tanto precisamos eleger um presidente da República honesto, que tenha Deus no coração, patriota, que respeite a família, que trate com consideração as crianças em sala de aula, que jogue pesado no tocante à insegurança em nosso Brasil, una o nosso povo. Brancos, negros, nordestinos, sulistas, ricos e pobres, homens e mulheres, para buscarmos o bem comum. Nós no Brasil temos tudo, tudo para sermos uma grande nação, só falta essa união entre nós e que o presidente eleja os seus ministros, indique seus ministros sem indicação política. Muito obrigado a todos.”
Em nenhum momento o militar reconhece e afirma a necessidade de políticas pensadas exclusivamente para a população negra. Muito pelo contrário, Jair Bolsonaro foi acusado[7], pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, de ter cometido crime de racismo e de manifestação discriminatória contra quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e LGBTs.
Marina Silva (Rede)
A única mulher presidenciável, em seu Plano de Governo, que possui 24 páginas, cita cinco vezes as palavras negro/negra, duas vezes os termos raças/racial/raciais, três vezes a palavra cota, e uma vez declara sobre ações afirmativas. Porém, em sua participação em programas jornalísticos durante a campanha (debate da RedeTV! e entrevista ao Jornal Nacional), Marina Silva apenas se refere à população negra utilizando o artifício de história de vida, ao se apresentar como uma mulher negra, diferentemente da sua campanha de 2014, em que a autodeclaração aparecia de forma ainda mais discreta. Segue trecho da entrevista ao Jornal Nacional, quando ela responde ao questionamento sobre o Brasil que quer para o futuro:
“O Brasil que eu quero para o futuro é um Brasil aonde nenhuma pessoa tenha que passar pela humilhação de não ter o trabalho para sustentar a sua família. Eu sou mulher, sou negra, mãe de quatro filhos, fui seringueira, empregada doméstica, me alfabetizei aos 16 anos e eu sei que muita gente acha que pessoas com a minha origem não têm capacidade para ser presidente da República. Eu estou aqui trazendo mais que um discurso. Eu trago uma trajetória, o compromisso de construir um país que seja justo e bom para todos, para empresários, para trabalhadores, para a classe média, para jovens, para mulheres. Muitas vezes as pessoas me admiram como uma exceção, mas eu não quero um país de exceção, eu quero um país de regras. Eu serei presidente da República com o seu voto para que esse país seja economicamente próspero, socialmente justo e ambientalmente sustentável.”
Apesar de, nas entrevistas e debates, Marina ter aproximado sua história de vida ao discurso de uma mulher negra, nas biografias disponibilizadas tanto em seu site quanto em seu Plano de Governo, ela não se autodeclara. A campanha da presidenciável faz referência ao desligamento das antigas ideias que governavam o país, portanto, a declaração de sua identidade racial é de extrema importância para garantir maior legitimidade a sua coligação, nomeada “Unidos para transformar o Brasil.”
Ciro Gomes (PDT)
Em seu Plano de Governo (62 páginas), o advogado e professor universitário se refere 15 vezes às palavras negro/negra, três vezes à igualdade racial/desigualdade racial, 14 vezes aos termos raça/racial/raciais, seis vezes à cota, seis vezes às locuções ação afirmativa / ações afirmativas/ política afirmativa / políticas afirmativas e duas vezes ao termo afrodescendente.
Já no debate analisado e na entrevista, ele não aponta as questões raciais, apesar de propor uma série de medidas para eliminar a discriminação à população negra em seu programa. Mas, por que, então, Ciro Gomes não cita algumas dessas propostas em seus discursos televisionados (pelo menos nos programas analisados)?
Uma contradição do candidato em relação às políticas de inclusão foi a escolha de Kátia Abreu como sua vice. A ex-ministra e sua forte ligação com o agronegócio e com a desestruturação da agricultura familiar, que é um sistema que gera emprego e estimula uma redistribuição agrária, apresenta ideologias que ferem os direitos das minorias, na medida em que o agronegócio acentua as discrepâncias econômicas e sociais das zonas rurais. Esse caminho chega aos direitos dos negros na medida em que raça, gênero e classe se entrelaçam, e, segundo Angela Davis, não se pode assumir a primazia de uma categoria sobre a outra.
Em junho deste ano, Ciro Gomes foi acusado[8] de racismo pelo vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) por chamá-lo de “capitãozinho do mato”.
Geraldo Alckmin (PSDB)
O Plano de Governo do candidato do PSDB, dos quatro presidenciáveis analisados, só perde para Bolsonaro em termos de não citar as questões raciais. Vemos as palavras negro/negra uma vez, os discursos raça/racial/raciais uma vez e a sentença política afirmativa uma vez. Já no debate e nas entrevistas, Alckmin não faz menção às pautas raciais.
Historicamente, o Partido da Social Democracia Brasileira, considerado de caráter conservador e liberal, privilegia os direitos humanos civis e políticos, em detrimento dos direitos coletivos, que abordam as ações afirmativas. É válido ressaltar que Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, tinha uma visão social, mas no tocante ao quadro de liberdades individuais, direitos de posse e direitos políticos. O PSDB, formado de uma dissidência do MDB após o fim da ditadura e da redemocratização, até hoje possui uma vertente à esquerda, a Esquerda pra Valer (EPV). Tal corrente, denominada como progressista, coloca em cheque os ideais social-democratas vigentes no manifesto de fundação do partido, aprovado em 1988.
Em geral, pode-se afirmar que todo partido tem suas distinções internas, prova disso é o apoio do EPV à candidatura de Geraldo Alckmin. Segundo matéria publicada pela Carta Capital, em novembro de 2017[9], o Alckmin não é o “candidato dos sonhos do grupo”, já que defende o endurecimento de penas para menores infratores e tem ligação com grupos católicos conservadores, porém, é uma opção mais adequada para o movimento, se comparado a João Doria.
O El País, em outubro de 2017[10], afirma que, dentre as pautas defendidas pelo EPV, estão: “a descriminalização e regulamentação da maconha e do aborto, cotas raciais e a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Temas nunca antes defendidos por Geraldo Alckmin.”.
Em relação às discrepâncias existentes entre os números do aparecimento das palavras-chave nos Planos de Governo e no debate e na entrevista, podemos chegar a uma hipótese: de que os candidatos não consideram a questão relevante para ser tratada nesses espaços midiáticos.
No debate da RedeTV!, com duração de 2h22min5s, e nas entrevistas do Jornal Nacional, com 30 minutos cada, a palavra “negro/negra” foi dita três vezes, conforme mostra o Gráfico 2. Num país onde há apenas 130 anos ainda existia escravidão, mais de quatro horas de rede nacional não foram suficientes para que os candidatos a presidente da República abordassem a temática com o destaque que merece. Ouvirmos apenas três vezes esses termos é, ao mesmo tempo, representativo do descaso ao tema e incoerente com a situação social brasileira.
Portanto, a conclusão perpassa pelo fato de que os jornalistas não questionam os candidatos em relação à população negra, tampouco sobre as propostas para o fim das desigualdades raciais.
Como podemos observar, as pautas raciais não são temas amplamente debatidos em todos os âmbitos em nenhuma das campanhas dos principais candidatos na corrida eleitoral. O cenário é conservador, e não é novo. É o velho racismo estrutural que ainda movimenta o Brasil.
- Planos de Governo:
http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/municipios/2018/2022802018/BR/candidat
[1] Mestranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e participante do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública (EME-UFMG).
[2] Dados extraídos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2016 do IBGE. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?=&t=o-que-e>
[3] http://justificando.cartacapital.com.br/2018/05/30/escrito-por-silvio-almeida-o-que-e-racismo-estrutural-entra-na-pre-venda/. Acessado em 03/09
[4] O debate que seria realizado na rádio Jovem Pan, no dia 27 de agosto, foi cancelado.
[5] https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/08/20/pesquisa-ibope-lula-37-bolsonaro-18-marina-6-ciro-5-alckmin-5.ghtml
[6] Na época, a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva ainda estava em debate. Em razão do atual quadro jurídico de Lula, o Ibope pesquisou outro cenário. Portanto, Fernando Haddad ficaria com o 5ª lugar. A chapa seria Haddad-Manuela, mas eles ainda não participaram de nenhum debate e/ou entrevista oficial.
[7] https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2018-08-28/jair-bolsonaro-stf-racismo.html
[10] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/24/politica/1508874186_568650.html
Referências
ALMEIDA, Silvio. O que É Racismo Estrutural? Letramento: Justificando. 1ª edição. 2018
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Editora Boitempo. São Paulo. 1ª edição. 2016.
HABERMAS, Jürgen. Intolerance and Discrimination. I. CON., Oxford University Press and New York University School of Law, v. 1, n. 1, 2003, pp. 02-12.
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