Fernanda Sanglard*
O mês de setembro teve início com uma triste notícia: na noite de domingo, dia 2, o Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro, foi consumido pelas chamas. O incêndio, que chocou o país e provocou reações até mesmo de quem não conhecia o espaço e seu acervo, representa uma tragédia anunciada e um sintoma de um país pouco preocupado com a preservação da memória.
Diante desse cenário e do momento eleitoral, cabe questionar como os presidenciáveis analisam a questão, o que propõem em seus programas de governo, qual importância atribuem ao que o ocorreu e que medidas adotariam para mitigar os danos e prevenir novas tragédias como essa.
Imagem aérea do Museu Nacional antes do incêndio
Fonte: Museu Nacional / Crédito: Roberto Silva
Cabe também refletir sobre o modo como lidamos com a construção de nossas memórias e sobre o papel exercido pelos atores políticos, os meios de comunicação e as políticas de cultura e memória no processo de compreender o que representa o patrimônio histórico e artístico de um país.
Segundo Andreas Huyssen (2014, p. 157), a memória é “crucial para a coesão social e cultural da sociedade”, sendo a rememoração do passado útil para a avaliação de erros. Para definir a “estrutura social da memória”, Maurice Halbwachs (1990) ponderou que as memórias são construções sociais, sendo a sociedade responsável por definir o que é memorável e onde essa memória será preservada. Sob tais perspectivas, rememorar representa proceder com escolhas, selecionar, imobilizar algo. A memória é, portanto, seletiva, fragmentada e constituída de esquecimento. Para Huyssen, o passado só é recuperado em forma de memória quando existe interesse ou motivo no presente, sendo influenciado por ele.
Mas que tipo de memória o Brasil tem interesse em preservar? Sabe-se que o Estado, o jornalismo, as mídias sociais, os atores políticos e os formadores de opinião, dentre tantos outros atores, auxiliam na definição daquilo que será “imobilizado” pela sociedade e se tornará memorável. Ou seja, é a partir daquilo que mobiliza a população, do que é priorizado nas políticas públicas e do que é noticiado que de algum modo elegemos as pautas que serão colocadas no centro da arena pública.
Não é de hoje que os jornais brasileiros denunciam o descaso com os museus, a falta de investimentos em manutenção e conservação em unidades culturais. Não é de hoje também que os problemas elétricos, de segurança e os riscos de incêndio em espaços públicos vêm à tona. O incêndio no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e a tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, servem de exemplo de como ainda lidamos de modo equivocado como as memórias. Criamos comoção nacional diante dos fatos, mas o que fizemos desde então para prevenir incêndios? Ou melhor: o que fizemos para preservar vidas e também nossa memória? O alarde nesse sentido não bastou para que a prevenção fosse adotada. Talvez estejamos apagando incêndios em vez de preveni-los.
Em novembro de 2017, audiência pública da Comissão de Cultura da Câmara dos deputados fez um alerta para os riscos de que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) viesse a ser fechado. O Iphan é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura responsável pelo reconhecimento de bens culturais de natureza material e imaterial e por estabelecer formas de preservação desse patrimônio. A presidente do instituto, Kátia Bogéa, informou na ocasião que, em 80 anos, só foram realizados dois concursos públicos para o setor e que o Iphan tinha 516 cargos vagos, o que comprometia o trabalho.
Uma das últimas políticas públicas de porte voltadas à memória nacional esteve atrelada ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Desde então, o que vem sendo feito? Quatro anos após o fim da CNV o Brasil sequer foi capaz de implementar uma de suas recomendações: a criação de um memorial nacional dedicado a reunir material do período da ditadura militar e a compartilhar com a sociedade as memórias do período autoritário.
O Museu Nacional e sua importância
Com 200 anos de existência, completados no dia 6 de junho de 2018, o museu foi criado por D. João VI e construído na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. A gestão da unidade cultural é de responsabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que conferiu ao Museu Nacional perfil acadêmico e científico.
Representação em litografia de 1829 da fachada do
Museu Nacional (então Museu Imperial)
Fonte: Museu Nacional
A unidade não era grandiosa apenas por servir de espaço de preservação e pesquisa de parte da História do Brasil - continha o Maxakalissaurus topai, dinossauro proveniente de Minas Gerais, e também “Luzia”, o mais antigo fóssil humano já encontrado no país -, tinha também a maior coleção egípcia em solo latino-americano. Possuía cerca de 20 milhões de itens de coleções focadas em paleontologia, antropologia e etnologia biológica. As exposições eram resultado das atividades de pesquisa e ensino vinculadas ao museu, que tem a finalidade de produzir e disseminar conhecimento nas áreas de ciências naturais e antropológicas.
A instituição Museu Nacional continua existindo, já sua materialidade precisa ser descrita no passado. O incêndio destruiu quase a totalidade de seu acervo. Um dano irreparável ao patrimônio científico e cultural, conforme atestam os especialistas. No dia seguinte ao incêndio, entretanto, o governo Federal já anunciava a reconstrução do prédio, como se um museu fosse apenas a estrutura, o concreto.
Praticamente todos os jornais do mainstream reproduziram a declaração do ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão informando que a reconstrução do museu começaria um dia após o incêndio. Como bem lembrou a jornalista Sônia Bridi em crítica à declaração postada no Twitter: “um museu é seu acervo, sua pesquisa, a ciência envolvida [...] não é um prédio”. Em entrevista à BBC News um dia depois, o próprio ministro considerou essa perspectiva: “Óbvio que o imóvel pode ser reconstruído, mas o acervo não pode ser recuperado.”
Manifestações no Twitter
Também em 3 de setembro, dia seguinte ao incêndio, o museu passou a ser um dos assuntos mais comentados nas mídias sociais. No Twitter, ocupou a dianteira dos Trending Topics na data, sendo a hashtag #LutoMuseuNacional a mais utilizada pelos usuários da rede. Também pelo Twitter, nove dos 13 presidenciáveis lamentaram o ocorrido. Apenas Cabo Daciolo (Patri), Jair Bolsonaro (PSL), José Maria Eymael (DC) e Vera Lúcia (PSTU) não se manifestaram sobre o ocorrido naquela ocasião.
Manifestações no Facebook
Na semana seguinte ao ocorrido no Museu Nacional, com exceção de Cabo Daciolo, todos os demais perfis dos presidenciáveis no Facebook tiveram post com comentário sobre o episódio.
Alguns deles reproduziram as mesmas postagens do Twitter ou publicaram informações semelhantes. Outros preferiram mudar o tom, ainda que o reconhecimento da importância do museu tenha sido unânime para todos os candidatos que se pronunciaram a respeito.
A diferença foi demonstrada no modo como os presidenciáveis buscaram apontar motivos para o que teria ocorrido. Os pontos principais indicados por eles podem ser divididos em três aspectos:
Corrupção ou emprego incorreto dos recursos e da função pública, que consta nas publicações de Álvaro Dias e Bolsonaro.
Descaso e gestão ineficaz, mencionados por Álvaro Dias, Amoedo, Bolsonaro, Boulos, Ciro, Eymael, Haddad, Marina e Vera.
Corte de investimentos, citados por João Goulart, Marina e Vera.
De todos os presidenciáveis, apenas Álvaro Dias e Jair Bolsonaro culparam explicitamente a administração direta do museu. Segundo Dias: “Os dirigentes do Museu Nacional devem ser demitidos imediatamente”. Já Bolsonaro acusou implicitamente os servidores de despreparo para a função ao afirmar que “as indicações políticas em troca de apoio são os maiores causadores da má administração pública e que nossa ação neste caso seria acabar com essa rotina que visa apenas interesses pessoais e partidários”.
Chama a atenção o fato de o candidato do PSL não ter lamentado nas mídias sociais a destruição do museu e, quando questionado sobre o que faria, em entrevista a jornalistas, ter afirmado: “Já pegou fogo, quer que eu faça o quê?” Após a polêmica ocasionada por essa declaração, Bolsonaro se justificou no Facebook, dizendo: “a chamada da UOL refere-se à minha resposta ao comentário idiota de seu jornalista sobre o Museu ter sofrido um incêndio. Pura demagogia! Enquanto procuram problema em minhas palavras, fecham os olhos para os verdadeiros responsáveis pela destruição nosso Brasil!”
O que os programas de governo dizem?
Ocorrido em plena campanha eleitoral, o incêndio deixa um alerta e serve como legado para as próximas gestões. Cabe então analisar o que os presidenciáveis e seus partidos propõem em termos de políticas culturais e de memória, bem como para a conservação do patrimônio histórico.
Considerando os programas de governo divulgados pelas 13 campanhas que concorrem à Presidência, foi feita busca simples pelos termos: “conservação de museus”, “cultura”, “incentivo à cultura”, “memória”, “museu”, “patrimônio histórico”, “políticas públicas”, “política de memória”. A seguir, será apresentada uma comparação dos programas. O resultado é sintomático do quanto a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural do Brasil fica à margem das propostas de governo.
Nos planos de governo “Plano de Nação para a Colônia Brasileira”, de Cabo Daciolo; “Um futuro de prosperidade está aberto a todos os brasileiros”, de Geraldo Alckmin; “Pacto pela confiança”, de Henrique Meirelles; “O caminho da prosperidade”, de Jair Bolsonaro; e “16 pontos de um programa socialista para o Brasil contra a crise capitalista” de Vera Lúcia, não há nenhuma menção aos termos.
O programa "Planos de Metas 19+1”, de Álvaro Dias, é dividido em duas esferas: Sociedade e Inovação. Em Sociedade uma das metas é referente à cultura. Embora ela tenha sido elencada, o plano não discorre a respeito de como se dará os incentivos culturais. Ao buscar as palavras-chave “memória, políticas públicas, conservação de museus, patrimônio histórico” não foi encontrado nada sobre o assunto.
Já o programa “Diretrizes para uma estratégia nacional de desenvolvimento para o Brasil”, de Ciro Gomes, dedica um capítulo à cultura, que menciona a preservação e valorização do patrimônio histórico, entretanto, não há especificações sobre esse patrimônio nem sobre como se dará tal preservação e valorização. Não há menção à política de memória, museus e afins.
Já o “Plano Lula de governo”, da campanha de Fernando Haddad, defende “a cultura como um direito” e aponta a necessidade de retomar políticas de promoção manutenção e preservação de aparelhos culturais e dos seus acervos, por meio do IPHAN e IBRAM. “Essas duas instituições serão dotadas das condições para que conduzam iniciativas amplas e diversificadas de proteção e promoção do patrimônio cultural e de fortalecimento da política nacional de museus”. Todavia, não cita quais são essas condições.
O plano de Guilherme Boulos, nomeado “Vamos sem medo de mudar o Brasil”, possui um tópico dedicado à memória e ditadura militar, no qual propõe medidas para prevenir as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura e outros recursos para preservação da memória da época. Não há citações sobre conservação de museus e afins.
O programa de João Amoêdo, “Mais oportunidades menos privilégios”, cita apenas que serão estabelecidos novos financiamentos para a área da cultura, sem explicitar quais.
Em “Diretrizes gerais do governo para construir um novo e melhor Brasil”, programa de José Maria Eymael, é citado incentivo à cultura, mas não se especifica como seria feito. Não há nenhuma menção à política de memória, museus e afins.
João Goulart Filho, no plano “Distribuir a renda, superar a crise e desenvolver o Brasil”, menciona a proteção ao patrimônio cultural do Brasil e a criação de uma secretaria especial para as culturas digitais, que seria o lugar de armazenamento da memória cultural nacional.
Por fim, Marina Silva, nas diretrizes de “Brasil justo, ético, próspero e sustentável” dedica um tópico específico à “cultura e valorização das diversidades”, mencionando a preservação do patrimônio cultural. Segundo esse item, “a política de preservação do patrimônio abrange o patrimônio natural e o conhecimento científico. Nos comprometemos a oferecer condições de funcionamento a museus, arquivos e bibliotecas; valorizar os registros escritos, sonoros e visuais de tradições orais e da produção contemporânea; e realizar tombamentos, a preservação e revitalização ambiental”.
Conclusões
A inexistência de menções dos termos “cultura”, “memória”, “museu”, “patrimônio” e de seus desdobramentos de interesse para esta análise em cinco dos 13 planos de governo demonstra que a manutenção e a preservação dos bens culturais são um tópico ignorado em algumas campanhas.
Em alguns planos de governo, o termo “cultura” até foi localizado, mas com conotação a outras áreas, como “agricultura”, “cultura do esporte”, “cultura de planejamento”, etc. Isso revela que pensar o patrimônio cultural do povo brasileiro, desenvolver maneiras de preservá-lo, garantir acesso aos bens culturais e estimular a produção artística não são considerados pelas campanhas de cinco presidenciáveis como diretrizes de governo.
E, até mesmo nos programas em que tais termos são abordados, ou não representam um tópico prioritário ou, quando são tratados com mais destaque e profundidade, como nos programas da Rede e do PT, não citam metas nem de modo concreto quais tipos de medidas seriam realizadas.
O simplismo com que, após o incêndio do Museu Nacional, alguns presidenciáveis trataram da questão em suas redes sociais – houve ainda quem ignorasse o fato – também é sintomática da carência de reflexões e discussões complexas sobre nossos erros passados e problemas crônicos. A gravidade do incêndio fez com que alguns imputassem culpa seletiva, seja ao governo Temer, ao de Dilma Rousseff ou à UFRJ. Ignoraram, entretanto, que os problemas de um museu que recentemente completou 200 anos percorrem gestões. E essa é a gravidade. Pensar o patrimônio requer que revisitemos nossas memórias e que, no presente, pensemos em medidas para mitigar os danos passados e vislumbrar prevenção futura. Ao limitar o que houve a um erro pontual e ao não abordar tal desafio em seus planos de governo, nossos presidenciáveis não promovem um trabalho de memória.
Isso demonstra que a questão das políticas culturais e de memória no Brasil ainda carece de mais debate e preocupação. Além de investimentos, claramente necessários para promover e manter os bens culturais acessíveis à população, o país precisa pensar sobre o seu patrimônio e sobre as memórias que deseja preservar. Caso contrário, tragédias como a do Museu Nacional continuarão ocorrendo. Que neste momento elas sirvam de reflexão e façam com que a sociedade mantenha o tema nas arenas de discussão públicas.
Referências
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2ed. São Paulo: Centauro, 2006.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
* Jornalista, mestre e doutora em comunicação. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública (EME) da UFMG e estuda políticas de memória, autoritarismo e deliberação.
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