por Leonardo Avritzer
A democracia é o regime político no qual existe pluralidade de interesses, opiniões e valores e no qual ninguém é capaz de vetar resultados. Esta definição clássica na ciência política emergiu durante a democratização brasileira. O Brasil, como sabemos, é um país de enormes vetos das elites aos processos eleitorais. Fomos o único país que se democratizou, no Cone Sul das Américas, sem eleições. Também fomos o país que mais tardiamente aboliu alguns dos critérios de qualificação para o voto. O voto dos analfabetos foi introduzido apenas em 1988. Assim, temos motivos para supor que o Brasil faz parte de uma tradição de fraca institucionalidade eleitoral na qual diversos atores colocam problemas em relação às eleições e sua legitimidade.
A entrevista do general Villas Bôas, comandante do exército, concedida ao jornal o Estado de S.Paulo no domingo, 9 de setembro, ressalta dois pontos que são importantes em uma discussão sobre veto aos resultados produzidos eleitoralmente. A primeira deles é a sustentação da falta de legitimidade do resultado eleitoral. O general afirma, referindo-se ao atentado que feriu um dos candidatos que concorre à eleição presidencial: “o atentado confirma que estamos construindo dificuldade para que o novo governo tenha estabilidade, para a sua governabilidade e podendo até mesmo ter a sua legitimidade questionada. Por exemplo, com relação a Bolsonaro, ele não sendo eleito, ele pode dizer que prejudicaram a campanha dele.”
Vale apontar alguns traços presentes nesta colocação. A primeira delas é a afirmação que elementos do processo eleitoral podem tornar uma eleição ilegítima. Este foi um argumento próprio dos anos 50 quando a UDN questionou os resultados das eleições de 1950 e 1955. Mas, é importante ressaltar que esse elemento esteve ausente do debate eleitoral ao final das eleições de 1989, 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010. Ou seja, tivemos eleições plenamente democráticas sem qualquer tipo de questionamento aos seus resultados entre 1989 e 2010. Porém, o argumento voltou à cena em 2014 no recurso feito por Aécio Neves em relação ao resultado da eleição, no qual o argumento da maioria pífia frequentemente usado em 1950 e principalmente em 1955 contra Juscelino Kubitscheck voltou. No texto do recurso afirmou-se: “cabe assinalar, contudo, que a despeito de tudo, os requeridos [Dilma Rousseff e Michel Temer] obtiveram pífia vitória nas urnas. A diferença entre as duas chapas em disputa no segundo turno foi de apenas 2,28%, num universo de 105.542.273 votos válidos. Ora, somados os votos em branco e nulos (1,71% e 4,63% do total de 112.683.273 de votos apurados, respectivamente), tem-se que a legitimidade dos reeleitos é extremamente tênue...”.
Esse argumento volta à tona em 2018 pela boca do comandante do exército. O que ele significa? Vejo dois significados principais: o primeiro é que o processo de contestação de resultados eleitorais mudou de nível passando de um campo judicial para um campo de coerção envolvendo dirigentes militares. O segundo é que podemos esperar algum nível de contestação de resultados em 2018. Permitam-me analisar os dois aspectos.
Evidentemente, a contestação feita pelo PSDB dos resultados eleitorais está diretamente ligada à crise política que vivemos. No entanto, gostemos ou não da contestação, ela foi feita no campo institucional junto ao TSE. Não houve, como ocorreu nos anos 50, no caso da eleição de Juscelino, uma contestação institucional e outra extra institucional junto aos militares. No caso da entrevista do general Villas Bôas, ela expressa a passagem dos conflitos políticos de um campo institucional para o extra institucional. Ele trabalha o conceito de legitimidade eleitoral de forma equivocada. Diversos candidatos podem alegar desvantagens de qualquer tipo em uma eleição, mas ele deixa em aberto o motivo pelo qual esse é um problema que lhe diz respeito. Na verdade, não diz, e o que impressiona é o silêncio absoluto dos dirigentes das principais instituições políticas, Presidência e Congresso, acerca da questão. Seria o caso de exigir que Presidência, Congresso e STF dissessem claramente que não cabe ao comandante o exército julgar legitimidade em processos eleitorais porque, ao se expressar sobre essa questão, ele deixa subentendido um poder de veto sobre os resultados que a democracia e a constituição não autorizam.
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