Por Leonardo Avritzer
As eleições do último domingo permitem um balanço da crise brasileira. Crise que envolveu uma queda de quase 9% no PIB, patamar similar à queda no PIB da Ucrânia, que esteve envolvida em uma guerra e perdeu territórios. A crise levou ao quase desmoronamento da principal instituição política do país desde os anos 30, a presidência da república, que depois de um impeachment passou a ser representada por um presidente fraco e sem qualquer legitimidade. Mas, o sinal mais evidente desta crise e que coloca a democracia brasileira sob suspeita foi a forte cisão entre eleitorado e opinião pública. Foi a opinião pública que questionou a legitimidade do governo Dilma Rousseff e abriu a via que conduziu aos diversos questionamentos do resultado eleitoral realizados por comandantes militares e pelo próprio candidato Jair Bolsonaro no próprio dia em que ele quase venceu as eleições no primeiro turno.
O resultado das urnas, com Jair Bolsonaro e Fernando Haddad no segundo turno, aponta para três questões que decidirão a eleição e a governabilidade a partir de 2019. A primeira é o que explica a ascensão de Jair Bolsonaro. A segunda é o sentido da polarização entre petismo e antipetismo que a conjuntura pós 2014 gerou. A última questão é qual será a nova postura do poder judiciário e do mercado, ou seja, das instituições não eleitorais no segundo turno.
É importante analisar o fenômeno Bolsonaro e seu papel na polarização política. Jair Bolsonaro foi um candidato completamente atípico até a semana passada. Ele não participou de debates e nem teve tempo de televisão até que o atentado sofrido em Juiz de Fora o alçou para perto do patamar de 30% das intenções de voto. Vale a pena tentar estabelecer um retrato mais fiel do candidato que quase ganhou as eleições presidenciais no primeiro turno. Bolsonaro, até a votação do impeachment da ex-presidente Dilma, era um personagem secundário na Câmara dos Deputados. Não participou ativamente de nenhuma das votações importantes no Congresso Nacional nos últimos 15 anos. O seu padrão de votação é claro: um estatista com traços de corporativismo militar e posturas radicais anti-esquerda. Vejamos os seus principais votos: foi contra o plano real, contra o fim do monopólio estatal do petróleo, contra a reforma da previdência proposta pelo governo Lula em 2003 e contra o teto salarial do funcionalismo. Ao mesmo tempo, suas emendas de bancada mostram apenas preocupações corporativas. O foco na segurança pública rendeu uma emenda no valor de 200 mil reais. Já o Ministério da Defesa recebeu emendas de 30 milhões de reais, valor aplicado na assistência odontológica aos militares e em ambulâncias para as UTIs das Forças Armadas. Assim, Bolsonaro é um deputado que não mostra nada mais do que uma defesa corporativista das Forças Armadas e uma agenda moral conservadora. Tudo o mais em relação ao candidato que recebeu cerca de 46% dos votos nas eleições de domingo está em aberto. Assim, o segundo turno terá de cumprir dois papeis: expor os candidatos ao eleitorado, o que até agora não ocorreu, e permitir que o debate sobre proposta para a reorganização do estado brasileiro ocorra.
A segunda questão a ser discutida em relação aos resultados do segundo turno é se há de fato uma polarização em torno do petismo e se o PT constitui um fator negativo para a democracia. Até 2010, a identificação dos brasileiros com o PT alcançava quase 30 pontos. Com a crise do governo Dilma e a Lava Jato ela chegou a um mínimo de 9 pontos em 2015 e tem se recuperado desde 2017. Ao mesmo tempo, aumentou o número dos eleitores que dizem que não votariam no PT de jeito nenhum, alcançando a marca de 30% em diversas pesquisas do IBOPE durante as eleições. A rejeição parece ter subido nesta última semana a julgar pelos resultados eleitorais. Assim, de fato o eleitorado se centrou na dinâmica petismo versus antipetismo. No entanto, não foi essa concentração que criou a polarização e sim o virtual desaparecimento do centro. Na verdade, é possível argumentar que os candidatos de esquerda se mantiveram exatamente onde sempre estiveram em termos de espectro político: defendem políticas sociais e têm programa semelhante ao que levou à vitória do PT em 2002. O que aumentou foi a distância que os candidatos conservadores passaram a ter em relação ao centro com as suas novas agendas morais, anti mulheres, anti gays, anti educação pública, entre outras. A pergunta a ser feita então é: por que a direita e os setores conservadores assumiram o lugar do centro, processo que levou à disparada das intenções de voto no candidato Jair Bolsonaro na última semana e à nova configuração do Congresso Nacional? A resposta passa necessariamente pela análise das ações do maior derrotado nas eleições deste primeiro turno, o PSDB.
O centro político no Brasil da Nova República foi constituído pelo PSDB e pelo PMDB. Os dois jogaram papeis diferentes. O PSDB teve a tendência a constituir um centro mais político com um programa pró mercado. O PMDB teve a tendência a ser um fiador dos governos no Congresso garantindo a maioria parlamentar para FHC e Lula. Os dois partidos fortemente derrotados nas eleições do último domingo optaram por abandonar o centro depois das eleições de 2014. No caso do PMDB, suas ações foram as seguintes: ele elegeu o presidente da Câmara Eduardo Cunha em fevereiro de 2015 com o propósito de inviabilizar um ajuste fiscal rápido e o de tirar o controle da agenda da Câmara da presidente, Ao mesmo tempo, através do vice-presidente ele apresentou pela primeira vez desde 1989 um programa de governo de tom radicalmente liberal. Com isso, o PMDB abandonou a sua postura de centro e tentou governar com um programa próprio de centro direita. Os resultados não foram bons. O seu candidato Henrique Meireles teve pouco mais de milhão de votos no domingo. O PMDB também perdeu quase metade das suas cadeiras na Câmara, tal como mostra a tabela 1 do Observatório das Eleições abaixo.
Já o PSDB teve uma performance ainda pior devido a sua forte ancoragem no estado de São Paulo e pelo fato de ter perdido posição no segundo turno destas eleições. O PSDB é um partido paulista que sucumbiu ao canto da sereia de Aécio Neves e contribuiu para o agravamento da crise. A derrocada de Aécio Neves prejudicou o partido fortemente, assim como a ascensão de João Dória que alienou, quando não atacou diretamente, o centro do seu próprio partido. O resultado de Dória na eleição deste domingo mostra um enfraquecimento da hegemonia do PSDB no estado que, associada à derrota fortíssima do seu padrinho político Geraldo Alckmin, apontam para a completa fragmentação do partido. Ao mesmo tempo, a queda da sua bancada no Congresso indica diminuição da sua relevância política (vide tabela 1).
Assim, a conclusão que podemos tirar em relação à da polarização é que ela não foi provocada pela radicalização da esquerda, mas pela incapacidade do centro político representado pelo PSDB e pelo PMDB em continuar se mantendo como referência nesta eleição devido ao abandono da sua posição clássica, durante o impeachment. O motivo desta incapacidade é claro: os dois partidos não foram capazes de convencer a população sobre os motivos do impeachment e sobre as virtudes do governo Temer. Associaram-se envergonhadamente ao anti petismo e acabaram perdendo relevância. Assim, a hegemonia do campo de centro ou de oposição ao petismo passou para aqueles que justificam o impeachment pela retirada do PT do poder. O líder deste movimento é o ex-capitão Jair Bolsonaro, não por acaso o vencedor do primeiro turno das eleições.
Por fim, vale a pena discutir uma última questão colocada neste segundo turno, a participação do judiciário em especial da operação Lava Jato e do mercado. Sabemos que a Lava Jato é um faccionalismo no estado brasileiro, no sentido que é constituída por um grupo que questiona tanto o estado de direito quanto as garantias individuais quanto a hierarquia do sistema judiciário. Ao mesmo tempo, a Lava Jato defende que a força-tarefa e as corporações podem se posicionar politicamente e até mesmo tentar influenciar resultados eleitorais. A Lava Jato se manifesta nas eleições duas maneiras: vazando documentos, como foi o caso nas eleições de 2014, ou liberando seletivamente o acesso a delações, como no final do primeiro turno. É importante que a Lava Jato não desempenhe papel no segundo turno mais importante da história do país. Por outro lado, as forças de mercado parecem se distanciar da democracia no segundo turno fazendo apenas cálculos de curtíssimo prazo sobre benefícios diretos que o mercado financeiro poderá ter em um possível governo Bolsonaro, sem contabilizar a instabilidade e a falta de previsibilidade que poderá produzir. É importante que as forças não eleitorais não decidam esta eleição. A continuidade da democracia e de uma estrutura de direitos no país está em jogo em um segundo turno no qual a esquerda enfrenta a direita sem poder pedir o apoio de um centro esfacelado e temendo que forças extra eleitorais atuem para influenciar o resultado.
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