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O lugar da criança e do adolescente nas eleições presidenciais

Foto do escritor: Observatório das EleiçõesObservatório das Eleições

Por Gabriella Hauber*


Outubro, mês das crianças. Este ano, também mês de uma corrida eleitoral que tem tudo para colocar em risco os direitos dessa mesma parcela da população (e de outras tantas, é verdade). Durante períodos eleitorais, crianças e adolescentes raramente ganham destaque em debates, entrevistas e programas do horário eleitoral gratuito. Geralmente, aparecem em temas que lhes dizem respeito, como educação e saúde, mas dificilmente como o foco das discussões.


Neste ano, pela primeira vez, um presidenciável atacou direta e incisivamente o instrumento legal criado para proteger integralmente meninas e meninos. Em entrevista ao jornal O Globo, Jair Bolsonaro, do PSL, disse com todas as letras que pretende “rasgar o ECA e jogá-lo na latrina”. O que significaria rasgar o ECA?


O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Nº 8069/1990, estabelece em seu artigo 4º ser “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” de crianças e adolescentes.

A criação desse documento foi resultado de uma luta de movimentos sociais ligados à infância e à adolescência e representa uma conquista para a área e para a sociedade de maneira geral, uma vez que passa a tratar todas as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. O ECA veio substituir o antigo Código de Menores, que funcionava como um instrumento de controle e colocava a tutela de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade nas mãos do Estado, tanto envolvidos em delitos quanto em casos de abandono.


Além de tratar de maneira igual todas as crianças e todos os adolescentes brasileiros, não só aqueles considerados em situação irregular, o ECA trouxe outros avanços significativos para a garantia dos direitos dessa parcela da população. No mesmo ano em que foi promulgado, em 1990, o Brasil assinou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1989. A partir disso, o Brasil passou a seguir a Doutrina de Proteção Integral, que estabelece que crianças e adolescentes sejam sujeitos de direitos e não mais objetos de tutela do Estado.

Apesar de o ECA ser considerado internacionalmente uma legislação avançada e ser uma referência mundial, a proteção integral ainda não ocorre na prática, muitos direitos ainda não foram efetivados. O poder público ainda é ineficiente. Então, o que propõem os candidatos ao governo federal para reverter essa situação e melhorar a qualidade de vida de nossas crianças e nossos adolescentes?





Fernando Haddad (PT) cita por diversas vezes crianças e adolescentes em seu plano, abordando a transversalidade das políticas voltadas para esse público. Crianças e adolescentes estão incluídos em propostas direcionadas à saúde, à educação, ao esporte, ao lazer e ao enfrentamento da violência, por exemplo. O ECA também é citado no tópico “Priorização da primeira infância”, que corresponde à faixa etária de 0 a 6 anos, no qual o candidato promete a efetivação do cumprimento da legislação, sobretudo, no que se refere ao combate do trabalho infantil e ao aperfeiçoamento das redes de atendimento e proteção.


Do outro lado do pleito, no plano de Jair Bolsonaro (PSL), as crianças estão inseridas nas propostas para a educação e de combate ao estupro de mulheres e crianças. Em relação à educação, Bolsonaro identifica a doutrinação como um dos maiores problemas do ensino brasileiro. Como solução, ele propõe “expurgar a ideologia de Paulo Freire”, educador, pedagogo e filósofo brasileiro, reconhecido internacionalmente por ter desenvolvido um método de ensino baseado na criticidade do aluno, entendido como um sujeito coletivo, com uma bagagem cultural, capaz de ler o mundo e participar de seu próprio processo de aprendizagem. Ao todo, Freire ganhou 39 títulos Honoris Causa mundo afora e seu livro mais importante, Pedagogia do Oprimido, foi traduzido para mais de 20 idiomas.


No caso do “estupro de mulheres e crianças”, as soluções de Bolsonaro para o problema fazem parte de um pacote geral de enfrentamento da violência, o que inclui a redução da maioridade penal. Ou seja, nas propostas de políticas para crianças e adolescentes está uma que representa um retrocesso na garantia dos direitos desse mesmo público.


Ao lembrar de crianças e adolescentes, sobretudo, em situações de violência, Bolsonaro também reproduz a própria forma como a mídia costuma abordar os adolescentes em conflito com a lei: quase sempre ligados à violência. Jornais e portais de notícia abordam a temática, normalmente, em editorias policiais, a partir da repercussão de casos individuais, que envolvem atos infracionais graves, sem uma maior problematização de questões étnico-raciais e de políticas públicas, por exemplo (ANDI, 2012).


Esse tipo de visibilidade distorcida contribui para gerar uma ideia de que os atos infracionais cometidos por adolescentes são, em sua maioria graves, o que é o contrário do que mostram os dados. De acordo com levantamento do Sistema Nacional Socioeducativo (Sinase) deste ano, 47% dos atos infracionais são análogos a roubo, 22% ao tráfico de drogas, e 10% ao homicídio, por exemplo.


A responsabilização para os atos infracionais também está no ECA. O documento traz um título inteiro sobre a prática de atos infracionais e capítulos que dispõem sobre as medidas socioeducativas que o adolescente que cometeu um ato infracional deve cumprir, de acordo com a gravidade de seu ato, que são: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida (meio aberto); inserção em regime de semi-liberdade; e internação em estabelecimento educacional (centros socioeducativos).


Rasgar o ECA não é somente rasgar os direitos de crianças e adolescentes, mas também as formas de os responsabilizar por seus atos. Rasgar o ECA é rasgar também a possibilidade de reduzir a própria ocorrência de atos infracionais. É encarar o problema apenas sob a ótica criminal, mais simplista, e não do ponto de vista social, mais complexo e efetivo. Garantir direitos e responsabilizar de maneira adequada também é uma forma de enfrentar o envolvimento dos adolescentes com a criminalidade.


Ao se rasgar o ECA, se rasga também o direito à vida e à saúde; o direito à convivência familiar e comunitária; o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; o direito à profissionalização e à proteção no trabalho. É rasgar a legislação referente à adoção, à tutela e à guarda e também aquela que regulamenta a rede de atendimento integrada de crianças e adolescentes, composta por Conselho Tutelar, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, dentre outros. Tudo isso está garantido e regulamentado em títulos, capítulos e seções do Estatuto da Criança e do Adolescente.


*Doutoranda em Comunicação Social - PPGCom UFMG e membro do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública


Referência:

Publicação Adolescentes em conflito com a lei, da Andi – Comunicação e Direitos, com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2012. Disponível em: http://www.andi.org.br/publicacao/adolescentes-em-conflito-com-lei-guia-de-referencia-para-cobertura-jornalistica

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