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Foto do escritorObservatório das Eleições

A construção de um “problema”: como os fluxos migratórios aparecem nas campanhas eleitorais?

por Augusto Veloso Leão [1]


Nós vivemos uma crise humanitária com a imigração venezuelana, mas não acredito que fechamento de fronteira é o caminho. - Fábio Almeida (candidato ao governo de Roraima)

Eu continuo insistindo, […] para que o governo federal olhe para Roraima, porque essa questão migratória é da responsabilidade federal. - Suely Campos (candidata à reeleição ao governo de Roraima)

O grave episódio ocorrido em Pacaraima é resultante do encontro entre dois grupos de desvalidos. De um lado, os refugiados produzidos pelo colapso da Venezuela — a maior catástrofe política, econômica e humanitária da América Latina nas últimas décadas. De outro, os habitantes de Roraima, em cujas costas o governo brasileiro jogou a tarefa de assistir praticamente sozinhos os venezuelanos. - Marina Silva (candidata à presidência))

Somos totalmente favoráveis à entrada dos imigrantes porque o aspecto humanitário deve falar mais alto. Mas não podemos esquecer a responsabilidade da gestão petista nessa crise que se instalou na Venezuela. - João Amoêdo (candidato à presidência)

Existem várias maneiras para um problema ser compreendido como um “problema social”, ou seja, receber atenção pública e política de maneira a viabilizar a mobilização e a atuação das pessoas para a sua resolução (ou pelo menos, para o seu debate). Durante as campanhas eleitorais, os “problemas sociais” ficam mais óbvios, já que candidatos do executivo e do legislativo escolhem diversos problemas para fazer parte de suas plataformas eleitorais. Alguns desses problemas conseguem mobilizar eleitores e viram votos para os candidatos e suas propostas de resolução, mas outros problemas acabam não chamando a atenção de eleitores e, por consequência, são esquecidos durante o decorrer da campanha.


É bom lembrar que um “problema social” não necessariamente precisa de condições objetivas para ser construído. Ao contrário, eles dependem de um processo coletivo, para serem apresentados e legitimados [2]. Vamos pensar no exemplo de uma cidade que tenha muitos buracos em suas ruas. Os moradores discutem sobre os buracos no dia a dia e se convencem de que é preciso fazer alguma coisa com relação a esse problema. Alguns, inclusive, tapam alguns buracos em suas ruas. Durante algumas eleições, candidatos conseguem convencer eleitores de serem aqueles que oferecem a melhor estratégia para resolver esse problema e são eleitos por conta disso. Eventualmente, os buracos vão diminuindo na cidade até acabarem completamente. Ainda assim, o problema dos buracos é um tópico recorrente na cidade e isso vai influenciar várias eleições seguintes. Mesmo sem buracos mais, candidatos que discutam sobre esse problema podem ganhar alguns votos por causa disso, já que os buracos já teriam se consolidado como um “problema social΅.


Os meios de comunicação têm um papel importante para esse processo coletivo de construção de “problemas sociais”. No momento de escolha dos assuntos que serão debatidos nas páginas dos jornais e nos programas de rádio e televisão, os meios de comunicação escolhem quais são os assuntos que vão receber mas atenção. Essa escolha pode depender daquilo que já é conhecido e discutido na sociedade ou pelos debates políticos (como no caso dos buracos no segundo momento), mas os jornalistas também estão sempre em busca de um “furo” de reportagem: alguma coisa que ainda não tinha recebido atenção anteriormente e rapidamente é considerado um grande problema por diversas pessoas. Um exemplo desse “furo” é a grande discussão sobre os casos de homicídio qualificado pelo fato da vítima ser do sexo feminino, o feminicídio, como determinado pela Lei Nº 13.104/2015, no primeiro semestre de 2018 [3]. O assassinato de mulheres existe há muito tempo no Brasil, mas a atenção dos meios de comunicação apoia a compreensão desse tema como um “problema social”. Também é por causa da dinâmica dos meios de comunicação que quando um caso recebe bastante atenção, outros casos também ganham manchetes, dando uma impressão de aumento no número de casos, mas que, na verdade, sempre ocorrerram.


As discussões que são apresentadas pelos meios de comunicação de massa são fonte de informação sobre os “problemas sociais” para os governantes. E, atualmente, o sistema de comunicação de massa se tornou o espaço principal para políticos se comunicarem com os cidadãos, com os dois grupos recebendo e fornecendo informações por meio da mídia. Os cidadãos definem quais sãos os “problemas sociais” importantes com base nas informações dos jornais, da televisão e da internet, e, no momento das eleições, procuram converter suas preferências em poder político, escolhendo governantes para solucionar esses “problemas sociais”. Da mesma maneira, os políticos apresentam suas propostas e mostram as ações que estão fazendo através dos meios de comunicação de massa. Eles também recebem informações sobre as preferências políticas dos cidadãos pela mídia, e responder adequadamente a essas preferências auxilia os governantes a serem eleitos ou a se manterem em seus cargos [4].


A construção de um “problema social”


Nessas eleições de 2018, podemos observar como o “problema social” das migrações é construído pela sociedade, pelos políticos e pelos meios de comunicação. Em 2016, os imigrantes no Brasil correspondiam a aproximadamente 0,59% da população total do país (1,2 milhão de pessoas) [5]. Diferente de outros “problemas sociais” debatidos nessas eleições, como o desemprego, por exemplo, só um número muito pequeno de brasileiros tem contato direto com imigrantes porque essa população é muito pequena. Por consequência, o que os meios de comunicação falam sobre a imigração forma a maior parte das percepções que os brasileiros têm sobre a imigração. No mundo todo, a proporção de imigrantes é de aproximadamente 3,3% da população total [6].


Quadro 1 – Dados populacionais do Brasil em 2016

Fonte: Cosmópolis (2017), com base em dados do DPF e IBGE



Dentro do tema da imigração, muitos assuntos que estão sendo debatidos pelos jornais falam sobre populações imigrantes em outros países. Uma desses assuntos é o fluxo de imigrantes e refugiados para a Europa, utilizando principalmente as rotas marítimas que passam pelo Mar Mediterrâneo, e a rota terrestre que passa pelos Bálcãs e Leste Europeu. Em 2016, 363 mil pessoas chegaram à Europa através de rotas marítimas e aproximadamente 5 mil pessoas morreram ou desapareceram no Mar Mediterrâneo e Egeu. [7] Entre 2012 e 2016, foram comuns as imagens de barcos precários lotados com imigrantes e refugiados no Mar Mediterrâneo. Outro assunto atual é a situação de separação de famílias e crianças e violação de direitos humanos nos EUA com as mudanças de políticas de imigração em 2018. Os meios de comunicação de massa mostraram algumas famílias brasileiras atingidas por esta situação, o que ajuda a aproximar o assunto da sociedade brasileira.


Imagem 1 – Barco no Mar Mediterrâneo.

Fonte: Guarda Costeira Italiana/Massimo Sestini


Olhando para o Brasil, nossa população imigrante tende a estar concentrada em algumas cidades do país, onde já existem outros imigrantes, ou onde é mais fácil chegar (cidades com portos ou aeroportos, como exemplo). São Paulo, por exemplo, é a cidade brasileira que tem a maior população de imigrantes em número absoluto (385.120 migrantes em 2016, ou 3,2% do total da população do município) [8]. Esse contato direto com migrantes é mais comum em cidades de fronteira e nas cidades em que há uma população imigrante maior, mas mesmo nestes locais, os meios de comunicação são importantes para a construção das percepções sobre o assunto.


O que podemos perceber é que a construção do “problema social” da imigração em 2018 está relacionado ao tema da imigração venezuelana no Brasil. Os venezuelanos tiveram um fluxo pequeno de imigrantes para o Brasil ao longo dos últimos anos, mas, desde 2016, há um fluxo importante dessa população, que está hoje concentrada especialmente no Estado de Roraima. O Brasil tem cerca de 50 mil imigrantes venezuelanos e cerca de metade está em Roraima, especialmente na capital, Boa Vista, onde representam uma população igual a cerca de 7,5% dos moradores do município.[9] Como a população imigrante cresceu muito desde 2016, os governos municipais e estadual têm apontado que os imigrantes contribuem para o aumento de atendimentos nos serviços públicos da região, como a saúde e educação.


A Constituição estabelece que a imigração é uma prerrogativa privativa da União (art. 22, XV) e a Lei de Migrações (13.445/2017) prevê o desenvolvimento de uma política nacional de migrações, refúgio e apatridia. Porém, de certa maneira, é possível argumentar que a imigração não se consolidou como um “problema social” para as discussões do governo federal, dado ao pouco número de iniciativas voltadas para esta população e à demora nas respostas do governo, por exemplo, com relação aos planos de interiorização dos imigrantes venezuelanos. As políticas para a população imigrante no Brasil têm sido construídas somente em respostas a casos tópicos, como o dos venezuelanos ou o dos haitianos e, normalmente, por ações de caráter emergencial, falhando em perceber a imigração como um processo recorrente e constante. A imigração também quase não está presente nos debates realizados pelos candidatos à presidência - ela aparece muito mais como uma forma de tecer críticas às ações das gestões atuais e anteriores, como se pode ver nas frases selecionadas para o início deste texto - e está presente nos planos de governo de apenas dois candidatos.


Ao mesmo tempo, a concentração de imigrantes tem implicações muito concretas para as administrações locais e estadual em Roraima. Pode-se argumentar que, naquele estado, a imigração se consolidou como um “problema social”, apesar de esses níveis de governo terem prerrogativas constitucionais limitadas para desenvolver ações. Ações relacionadas com a imigração estão presente nos planos de governo de todos os cinco candidatos a governador para o estado e perguntas sobre a imigração e as ações planejadas pelos candidatos para o tema estão presentes nas entrevistas relacionadas às eleições estaduais. Os conflitos entre a população brasileira e a população imigrante venezuelana também funcionam para impulsionar a construção da imigração como um “problema social” para o qual os governantes devem oferecer respostas. [10]


Imagem 2 – Imigrantes venezuelanas.

Fonte: Felipe Larozza/Cáritas Brasileira



Portanto, percebe-se que os “problemas sociais” passam a existir apenas quando passam por um processo de construção coletiva, que ocorre na sociedade, no meio político e nos meios de comunicação de massa. A imigração no Brasil, por se tratar de uma população muito pequena, parece não reunir questões objetivas para se tornar um “problema social” no nível federal, ou em cidades com uma grande população migrante. Por outro lado, no caso de Roraima, o assunto tem recebido maior atenção e começa a se organizar como “problema social”. Além de reunir condições objetivas para se tornar um “problema social”, percebe-se que os candidatos ao governo estadual procuram utilizar a questão da imigração de duas maneiras principais: a) para criticar as gestões anteriores e de outros partidos, a mesma estratégia utilizada por alguns candidatos à presidência; e b) para corroborar com a ideia que a responsabilidade pelas populações imigrantes é do governo federal, assim como a responsabilidade pelos conflitos com essa população. Dessa maneira, a intenção é conseguir votos ao apontar a imigração como um “problema social” criado pela falha de outras gestões, sem tomar a responsabilidade dos conflitos para a gestão estadual.


[1] Pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública (EME-UFMG). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), através do Programa Nacional de Pós-Doutorado. Contato: augustovl@usp.br


[2] BLUMER, Herbert. Social Problems as Collective Behaviour. Social Problems, v. 18, n. 3, p. 298-306, 1971.


[3] Gabriella Hauber discute a questão do enfrentamento à violência contra a mulher nas eleições de 2018 no texto “Candidatos à presidência e o enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil”.


[4] Essa dinâmica corresponde ao “modelo de duas vias” de Jürgen Habermas. HABERMAS, Jürgen, Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 2 v.



[6] INTERNATIONAL ORGANISATION FOR MIGRATION (IOM), World Migration Report 2018.


[7] OM. Mixed Migration Flows in the Mediterranean and Beyond. Compilation of available data and information, 2016.


[8] Vide nota 5.



[10] Em janeiro e fevereiro de 2018, uma série de ataques causaram incêndios em residências de venezuelanos em Boa Vista (G1, 2018, 09/02/2018). Em agosto de 2018, durante uma manifestação de brasileiros em reação a um assalto que teria sido realizado por venezuelanos, barracas e abrigo de imigrantes foram incendiados e destruídos (Agência Brasil, 2018). Em setembro de 2018, após um furto em um supermercado em Boa Vista, um brasileiro foi morto com uma facada e o agressor, um venezuelano, foi morto a pauladas por um grupo de brasileiros (G1, 2018, 08/09/2018).

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