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Foto do escritorObservatório das Eleições

O Judiciário nas Eleições

Por Marjorie Marona e Fábio Kerche


Não é uma novidade a participação do Poder Judiciário nas eleições, até porque o Brasil, como acontece em algumas outras democracias, possui um ramo da justiça encarregado exclusivamente de cuidar dos pleitos eleitorais. Também nos acostumamos a assistir um Poder Judiciário, por meio do STF, que modifica regras eleitorais como se fosse atribuição dos ministros, e não dos políticos, legislar sobre coligações, cláusula de barreira, financiamento de campanha, tempo na TV etc. O que nos chama a atenção nesta eleição é que essa participação, se não aumentou em quantidade, ao menos modificou, em algum grau, o tipo de atuação do Judiciário --além do Ministério Público e da Polícia. Ou seja, no lugar de um sistema de justiça encarregado de regular os aspectos formais/procedimentais da disputa eleitoral, no melhor exercício de suas funções de accountability (Gloppen et al, 2004), avançamos no sentido da interferência no jogo eleitoral em si, tendo uma atuação não mais restrita ao “antes” e ao “após” o pleito, mas ao “durante”.


Na última semana, o Min. Lewandowski moveu as peças do intrincado jogo que envolve a prisão de Lula, por exemplo. Na quarta (26), pediu vista de um recurso do ex-presidente que se encontrava no plenário virtual, obrigando que seja analisado presencialmente no plenário do STF. Não foi a primeira vez que o fez no caso dos recursos da defesa de Lula que são sistematicamente encaminhados, pelo Min. Fachin, para o ambiente virtual, permitindo o julgamento remoto sob o pressuposto de que se trata de questão que envolve jurisprudência consolidada na Corte. Esse movimento aumentou a pressão sobre o Min. Fachin. Lewandowski liberou o recurso para julgamento já no dia seguinte (27) e jogou o problema no colo do Min. Tofolli, que tem a responsabilidade, como presidente, de marcar a data do julgamento.


Ainda na sexta (28), em uma sequência de movimentos aparentemente coordenados, o Min Lewandoski autorizou o ex-presidente Lula a conceder entrevistas da carceragem da Polícia Federal (PF) em Curitiba, onde ele se encontra preso desde 7 de abril. Menos de 24 horas depois, veio a reação. O Min. Fux, valendo-se do art. 4º da Lei 8.438/92, determinou a suspensão da decisão do Min. Lewandowski, atendendo ao pedido formulado pelo Partido Novo, sob o argumento de que "há elevado risco de que a divulgação de entrevista com o requerido Luiz Inácio Lula da Silva, que teve seu registro de candidatura indeferido, cause desinformação na véspera do sufrágio, considerando a proximidade do primeiro turno das eleições presidenciais". O Min. Lewandowski voltou a conceder permissão para a realização da entrevista com o ex-presidente Lula, apontando “vícios gravíssimos” na decisão do Min. Fux que, segundo ele, não é capaz de produzir efeito legal, pois “não possui forma ou figura jurídica admissível no direito vigente”.


A situação atual guarda certa semelhança com aquela protagonizada pelos desembargadores do TRF4, Rogério Favreto, João Pedro Gebran Neto e Carlos Eduardo Thompson Flores, e o juiz de 1º instância Sérgio Moro, no episódio da soltura do ex-presidente Lula, em julho. Naquela ocasião, em circunstância que dispensa detalhamento, a então presidente do STF, Min. Carmen Lúcia, perdeu oportunidade de reafirmar, de modo contundente, o estado de direito, resgatando parte da legitimidade da Corte, já bastante abalada pelos rumos da Operação Lava Jato. Em nota, breve e vaga, se limitou ao mantra que afirma a impessoalidade da justiça e a necessidade de respeito aos procedimentos judiciais pela garantia da segurança jurídica. De resto, reafirmou a competência regional do TRF4, sinalizando, claramente, a sua pouca intenção de avançar na correção de rumos. Reafirmava uma postura de omissão ativa que já havia marcado a sua atuação estratégica em torno do julgamento da prisão em segunda instância, evitando que a matéria fosse levada a plenário.


Agora, o presidente Min. Dias Tofolli parece permitir a internalização da crise que avança com a politização do judiciário em tempos de eleição. O Min. Dias Tofolli, que teria tentado, sem êxito, intermediar a disputa entre os colegas, não tardou em se manifestar no sentido de que nenhum assunto “polêmico” seria pautado em plenário durante o período eleitoral. Rejeitou com isso a possibilidade de resolução pela via colegiada, que poderia voltar a agregar legitimidade a atuação da Corte, ao funcionamento do sistema de justiça, evitando ímpetos individuais de interferência mais direta no pleito eleitoral.


Falhou. Mas houve quem não perdesse a oportunidade de interferir no processo eleitoral. O juiz Sérgio Moro voltou à cena para levantar, a menos de uma semana da votação, o sigilo de parte da delação premiada de Antônio Palocci negociada em abril com a PF, a mesma delação que tinha sido rejeitada pelo Ministério Público Federal. Requentou o tema da corrupção e da Lava Jato sem que houvesse nada de propriamente novo, do ponto de vista do conteúdo. Vale a pena resgatar, aqui, episódio congênere, datado de março de 2016, em que o mesmo juiz levantou o sigilo sobre uma intercepção telefônica irregular, revelando conversa entre os ex-presidentes Lula e Dilma, às vésperas da nomeação daquele para a Casa Civil, contribuindo de forma decisiva para o ocaso do governo. Em seu despacho, Moro justificou o ato em nome daquilo que qualificou como “o saudável escrutínio público sobre a atuação da Administração Pública e da própria Justiça criminal”, alegando que a “democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”.


Naquela ocasião, o abuso reconhecido a posteriori pelo próprio magistrado lhe rendeu apenas uma reprimenda por parte do STF, ao passo que inviabilizou a nomeação do ex-presidente Lula, suplantando os planos do governo Dilma, precocemente interrompido, de retomar o diálogo com o Congresso Nacional. Mais uma vez, o STF não parece ter se colocado à altura dos desafios que sua posição no sistema de freios e contrapesos lhe exigia.


Mas não são apenas os ministros do STF e o juiz Moro que se lançam no processo eleitoral. Promotores e policiais também disputam os holofotes às vésperas da eleição. O Ministério Público de São Paulo, por exemplo, formalizou diferentes denúncias de fatos ocorridos anos atrás, contra os presidenciáveis do PSDB, Geraldo Alckmin, e do PT, Fernando Haddad, em plena campanha eleitoral. Em outro movimento espetacular o candidato ao Senado pelo Paraná, o ex-governador Sérgio Richa, chegou a ser preso essa semana. Obviamente que esses processos serão julgados apenas após as eleições, comprovando ou refutando a acusação, mas todas essas iniciativas podem significar prejuízos irreparáveis aos candidatos.


Esse conjunto de eventos é bastante ilustrativo da expansão inequívoca do protagonismo judicial, a expensas da democracia e, particularmente, do aprofundamento do sistema de justiça como mediador do resultado eleitoral, se não em termos quantitativos, ao menos em um sentido qualitativo. Significa dizer que ao invés de proteger o sistema eleitoral e assegurar o correto fluxo do debate, os agentes do sistema judicial acabam, muitas vezes, desestabilizando o processo, com consequências para a própria democracia, na medida em que ele próprio insere assimetrias na competição por posições de poder político. E esses movimentos não sofrem restrições, já que a inimputabilidade dos juízes e integrantes do Ministério Público são quase que absolutas.


Do ponto de vista estrutural, é possível apontar para a Lei da Ficha Limpa como o mecanismo que reforçou ainda mais o acoplamento entre sistema judicial e sistema político. Isso porque inseriu um critério de elegibilidade afeto à corrupção, expandindo para todo o sistema de justiça o potencial de intervenção na disputa política. E isso não se restringe apenas ao momentos do registro das candidaturas. O candidato ao governo do Rio, Anthony Garotinho, disputando com chances uma ida ao segundo turno, foi retirado no meio da campanha por ser considerado ficha suja após uma condenação em segunda instância às vésperas da eleição. Sua ausência da disputa provoca uma pequena reviravolta no processo eleitoral. De fato, o combate à corrupção que marcou a atuação protagonista das instituições do sistema de justiça nos últimos anos arremessou juízes, promotores e policiais à disputa do interesse público. A eleição se coloca, nesses termos, como um contexto amplamente favorável ao avanço dessa disputa por parte desses atores, os quais, como já dissemos, são, na prática, unaccountables, embora gozem de ampla autonomia de atuação, numa combinação pouco comum nas democracias.

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